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A «chaminé algarvia»

Símbolo maior da região, a chaminé ornamentada apresenta-se, a par da platibanda, como o elemento mais característico da arquitectura popular algarvia, apesar de, por vezes, surgir mesclada de influências eruditas. Expressão evidente do domínio de técnicas ancestrais do trabalho da massa e do «jogo» que o ladrilho ou a telha permite, utilizados também noutros elementos arquitectónicos da casa, pretende, através de complexas gramáticas formais e decorativas, para lá do seu propósito funcional, mostrar a criatividade do mestre construtor e/ou o gosto do proprietário do imóvel onde se integram.

No Algarve, as chaminés começam por ser estruturas de escoamento do fumo extremamente simples. Geralmente – e quando existentes – eram formadas apenas por uma sucessão de ladrilhos ou telhas assentadas transversalmente, sendo frequente, até há muito pouco tempo atrás, as habitações rurais não possuírem qualquer chaminé. O fogo, muitas vezes feito no chão, a um canto da divisão da casa reservada para este fim, era escoado por um simples buraco aberto no caniço, por entre algumas telhas que se alteavam. No Baixo Guadiana, por exemplo, são muitos os aglomerados onde a população refere a não existência de uma sequer chaminé.

Pelo menos a partir do séc. XVIII e ao longo do séc. XIX, começa-se a assistir ao desenvolvimento de soluções que parecem caminhar a par destes exemplares mais antigos. Mais reduzidas horizontalmente, tornam-se cada vez mais enriquecidas em termos formais, decorativos e cromáticos, chegando ao ponto de, nos inícios do séc. XX, em habitações mais humildes, a modéstia da casa contrastar até com a exuberância dos seus exemplares.

Olhando para estes primeiros modelos que se vão autonomizando da linguagem vernácula da casa e ganhando uma liberdade própria, embora acompanhando quase sempre a linguagem decorativa integral da mesma, percebe-se que isso se começa por verificar nas habitações rurais mais abastadas, nas chamadas “Quintas de Recreio”, que proliferam ao longo do século XVIII, características de um estrato social mais instruído, com um maior “sentido de urbanidade” (porque de proprietários urbanos) e, progressivamente, vão conquistando as classes mais populares, nas quais será mesmo possível assistir-se à edificação dos modelos mais imaginativos. É importante, por isso, como referem o historiador Horta Correia e os arquitectos José Manuel Fernandes e João Vieira Caldas, relacionar as linguagens decorativas das habitações de raiz mais erudita com as de cariz mais popular e as expressões rurais com as urbanas para assim melhor perceber de que forma umas influenciaram as outras. Deve dizer-se que um estudo deste tipo ainda está por realizar.

 O segundo volume do conhecido Guia de Portugal, impresso em 1927, indicava já a chaminé como um elemento de importância acrescida na «arquitectura típica do Algarve», porquanto carregada de “uma graça etérea, (…) rendilhada, fendida e trabalhada como um brinquedo, esbelta e esguia como um fuso de roca ou como um leve e aéreo minarete, ingénua e cândida como um discreto sorriso do lar”. Percebe-se que, relativamente às formas, muitas delas sugerem reminiscências de um passado remoto, lembrando por exemplo, à primeira vista, a presença árabe na região e os seus minaretes associados. Encontram-se também, em termos decorativos, mais frequentemente, datas associadas, o que ajuda no enquadramento cronológico dos exemplares ou ainda, mais raramente, elementos figurativos antropomórficos ou naturalistas. De qualquer forma, a decoração que mais comummente se encontra, é a de tipo geométrico, na sequência de uma linha decorativa imemorial, num jogo por vezes subtil, produzido pelo rendilhado do trabalho de massa ou do «jogo» do ladrilho. Neste sentido, pode dizer-se que a linguagem simbólica das formas e dos elementos decorativos utilizados é aquela que, no fundo, constitui o imaginário colectivo das populações: daí a diversidade dos elementos encontrados e daí também as reminiscências que os mesmos parecem indiciar.

Partindo das tipologias definidas pelo Arqº José Manuel Fernandes, é possível distinguir-se, pelo menos três grandes tipos de chaminés no Algarve:

  1. de balão, onde um volume cónico encima um corpo cilíndrico fechado e decorado;
  2. em grelha horizontal, constituída por uma sucessão de ladrilhos ou de elementos trabalhados em massa;
  3. de tipo vertical, geralmente animada por um jogo geométrico, anguloso e rendilhado.

O momento de maior expressividade decorativa situa-se entre finais do século XIX e inícios do século XX, acompanhando, no fundo, um movimento modernista europeu, de desenvolvimento arrebatado dos meios de comunicação que viriam a tornar mais fácil a circulação de bens, mercadorias e modas. No Algarve, o surgimento do comboio e o desenvolvimento das principais vias – a EN125 constitui-se como principal via de comunicação nesta altura – conferem uma «urbanidade» até então não existente, impondo às habitações e aos seus proprietários uma exposição e uma necessidade de «comunicação urbana» de outra ordem. Há que «mostrar» os rendimentos resultantes dessa maior facilidade de escoamento dos produtos, e há que «alinhar» nas novas modas e tendências decorativistas que chegavam agora mais facilmente. O investimento na chaminé é, ao nível da arquitectura, disso um bom exemplo, a par da platibanda decorada.

O desenvolvimento do turismo e a instituição dos valores de um “Algarve típico” viria a transformar a chaminé num dos principais elementos simbólicos da região. Diga-se que a partir dos anos cinquenta e sessenta eram raros os postais turísticos da região que não promoviam um destes exemplares. De igual forma, nos inícios do séc. XX haveria de surgir uma corrente de arquitectos, dos quais se destacou Raul Lino, que viria tentar propor uma arquitectura “genuinamente portuguesa”, definindo modelos e chavões que haveriam de transformar não só as arquitecturas mas também as mentalidades que viriam a assumir muitos desses estereótipos como verdades efectivas. Estava definitivamente instituído que um valor obrigatório, ilustrativo da tipicidade da região, passava pela casa de chaminé rendilhada. Só o conhecido «Inquérito à arquitectura regional», depois editado sob o título “Arquitectura Popular em Portugal”, da responsabilidade do Sindicato Nacional dos Arquitectos, viria a desmistificar aquelas ideias, em resultado dos estudos exaustivos desenvolvidos em torno das arquitecturas tradicionais. Victor Mestre e Filipe Jorge haveriam de descrever aquele movimento como o «aportuguesamento das formas» referindo que foi este o momento a partir do qual se viria a infringir um golpe fatal nos valores populares, subvertendo a alma das casas e dos objectos. A chaminé decorada que até então se traduzira numa clara tentativa de individualidade e singularidade, haveria de padronizar-se, estereotipar-se e industrializar-se, passando a ser concebida a partir de modelos pré-fabricados em série. De qualquer forma, adquiriu um estatuto de imagem de marca da região transformando-a num dos elementos de referência da mesma.

Miguel Godinho

Técnico Superior de Património Cultural | Centro de Investigação e Informação do Património de Cacela | Câmara Municipal de Vila Real de Santo António

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