Das Mantas para a Mesa: geometria, cor e “díaita”
Esta colecção de produtos TASA reúne em si dois temas fundamentais: por um lado, a natureza dos artigos, uma linha de cozinha, que os relaciona com a alimentação; por outro, a sua estética, inspirada na gramática decorativa das mantas alentejanas, em especial as designadas“mantas montanhac”. Ambos os temas podem ser entendidos como elos de uma tradição cultural antiga e comum às regiões que participam desta nova fase de criação de produtos. Já não se trata apenas do Algarve, mas também do Alentejo e da Andaluzia, regiões que, embora com as suas particularidades, variedades e características especiais partilham, talvez, uma mesma matriz civilizacional. O TASA abre-se assim a novos desafios e alarga o seu espaço de inspiração!
A Dieta Mediterrânica tem-se assumido como uma das principais características culturais destas regiões, o que justifica as diferentes abordagens de que tem sido alvo. De facto, o conceito “Dieta Mediterrânica” não se restringe à alimentação propriamente dita, embora este já fosse, por si só, um aspecto de grande importância. Primeiro, a própria característica “mediterrânica” não diz respeito apenas às fronteiras do mar que lhe confere o nome; depois, porque o termo “dieta” traduz em si muito mais do que a comida. Derivado do grego “díaita”, exprime sobretudo um“modo de vida”, ou modelo cultural, que engloba a alimentação, os sistemas de produção, os objectos, ferramentas e técnicas utilizadas pelas diferentes comunidades ao longo de milénios, onde se incluem igualmente as festividades, rituais e outras manifestações similares. É, portanto, neste campo que se desenvolve o processo criativo desta colecção de produtos TASA: relacionando as peças, que são artigos de cozinha, com a ideia de alimentação, que é a sua função principal, mas também com a Dieta em toda a sua dimensão. Exemplo disto, é aTarrina, uma peça elaborada em barro e cortiça e que tanto serve para “levar à mesa”, como para transportar a comida, à semelhança das marmitas que os antigos trabalhadores rurais levavam para o campo; ou o original Galheteiro de latão, especialmente concebido para – juntamente com o habitual azeite – colocar as ervas aromáticas frescas, acabadas de colher, também elas bastante apreciadas para temperar vários pratos da cozinha mediterrânica.
Contudo, outro aspecto importante na execução destas peças é a sua decoração. Na realidade, não se trata de um outro tema. A cuidada selecção dos materiais para elaborar os objectos, ou para os decorar é parte de um processo mental que resulta, tradicionalmente, da percepção que os artífices têm do território onde habitam, ou com o qual estabelecem relações. Uma capacidade de interpretação que está ligada às características físicas do lugar, mas também às de carácter mais “cultural”, que definem os modos de vida, gostos e ideias das pessoas. Nesta medida, a decoração de uma peça quase nunca é aleatória ou inconsequente, mesmo quando parece provir de gestos automatizados. É simbólica e muito diz do lugar onde se produz, contribuindo para transformar os objectos em testemunhos materiais da vivência das pessoas. A decoração e os procedimentos que lhe são inerentes oferecem-nos – a nós, público espectador e usufruidor – várias informações acerca dos materiais seleccionadas, das técnicas utilizadas na sua manipulação, dos atributos do território, das preferências e saberes da população, de mensagens que se queiram transmitir e, sobretudo, do enquadramento cultural que lhe dá forma.
O nome “montanhac”, que baptiza a colecção, evoca os motivos decorativos das conhecidas mantas alentejanas, nos quais se inspira. Esta opção estética pode ser entendida no contexto do interesse cultural associado àquelas peças de tecelagem, mas, tal como no passado, pode prender-se a um certo fascínio exercido pelos desenhos geométricos que as caracterizam. Estes formam um catálogo de ricos padrões decorativos, desde os mais simples aos mais complexos, que parecem remontar às nossas raízes de influência magrebina. Resulta atraente que este tipo de desenhos, repetidos durante séculos numa sucessão de gestos semelhantes – e que, afinal, se encontram em variados objectos – sejam agora transportados e recriados numa diferente realidade de produção artesanal, como é a do Projecto TASA. Todavia, no que se refere a algumas destas peças – os recipientes em barro – pode mesmo falar-se de uma espécie de “regresso às origens”, na medida em que muitos dos padrões daquelas mantas alentejanas revelam grande afinidade com a rica decoração de algumas cerâmicas islâmicas.
Nos objectos com inspiração na cultura islâmica, quer se trate de loiça de cozinha, tecelagem ou outra tipologia, observam-se normalmente dois itens fundamentais: a geometria e a cor. Este último, para além do natural simbolismo de lhe costuma ser inerente, está particularmente relacionado com o território de produção, de onde, boa parte das vezes, os artífices extraiam os pigmentos das tonalidades desejadas para os objectos criados. Esta circunstância proporcionava a realização de um trabalho com uma forte carga identitária do lugar. No caso das mantas alentejanas, estão tradicionalmente presentes os tons escuros das cores de terra – entre o bege, o castanho e o preto – provenientes de pigmentos naturais. Já as cores seleccionadas para guarnecer esta colecção são resultado de uma mais variada paleta de possibilidades, decorrente das tecnologias modernas. Porém, continuam a relacionar-se simbolicamente com o território ao traduzirem algumas das suas características e significados. Assim, o azul homenageia a coloração luminosa do céu e do mar do Alentejo e Algarve; o cor-de-laranja evoca os laranjais algarvios, assim como os vastos campos de papoila alentejanos; e o violeta, as tonalidades dos campos de urze e alfazema presentes nestas paisagens. Todas três remetem para aspectos relacionados com o mundo rural, que as identificam com o território, enquanto são aplicadas em produtos de carácter mais citadino e sofisticado.
Por outro lado, as “mantas montanhac” participam de uma tradição de tecelagem comum ao Alentejo e Serra Algarvia. Com diferentes variedades, possibilitadas pelas muitas combinações de motivos geométricos que desenham distintas tramas, as “montanhac” são as peças de maior prestígio dentro das tipologias de mantas de lã tradicionais. Prestígio para quem as possui, dado que não são acessíveis a todos, mas também para quem as confecciona, na medida em que são o ponto alto das artes do tear. Do mesmo modo, o trabalho dos artesãos que desenvolvem as peças desta colecção surge aqui bastante valorizado: enquanto detentores de saberes e técnicas de transformação e conjugação dos materiais utilizados – barro, madeira, cortiça, lata ou tecido; e enquanto criadores de objectos que, sendo usuais, se apresentam bastante cuidados com uma leitura e design inovadores.
Em suma, o mesmo sistema decorativo aplicado na tecelagem das “mantas montanhac” continua a ser aplicado noutros contextos, numa constante actualização de sentidos, tendências e possibilidades que falam a mesma linguagem, e que se moldam perfeitamente ao espírito do Projecto TASA. E tudo isto permanece, de certo modo, ligado a esta “díaitia” do espaço de influência mediterrânica, afirmando-se como produto(s) de uma herança cultural antiga, mas sempre renovada e reinventada.
Susana Calado Martins